Menos julgamento e mais abertura


|  Por Raphael Pellegrini  |

Livros de escritores falando sobre seus processos de produção são relativamente comuns. Alguns desses textos, já bem famosos, como o de Stephen King e o recente de Haruki Murakami, surgem como formas de se aproximar do movimento da escrita por meio das palavras de autores consagrados. De Rilke, com suas Cartas ao Jovem Poeta, passando pela aulas de Cortázar em Berkeley e chegando ao Romancista por Vocação, de Murakami, autores que escrevem ou falaram sobre a literatura e sobre o ato de escrever se tornaram comuns para mim.

Nesse mesmo movimento, e em diálogo com um texto de um filósofo que sou completamente apaixonado e totalmente fascinado, Jacques Derrida, sobre literatura e estruturalismo, resolvi me pensar como revisor, leitor, escritor a partir do que desejo escrever aqui no Capitu Já Leu. Para além de assumir meus textos apenas dentro de um gênero resenha, tenho tentado caminhar por um outro percurso, na busca de diminuir os muitos julgamentos sobre os textos lidos – tal livro é bom/ruim simplesmente – e produzir mais abertura para aquilo que escrevo (tenho me levado a pensar que consegui fazer isso no texto dos Deuses Americanos, Eu sou a Lenda e Oryx e Crake, por exemplo.). A ideia é que cada texto sobre uma leitura possa puxar outros livros, outros textos, outras ideias, e não dar um veredicto se vale ou não a compra do livro. Até porque o ato de ler é totalmente pessoal e subjetivo, portanto aquilo que eu pensei, senti, imaginei durante a leitura só acontecerá naquele momento e comigo. Mesmo que eu compartilhe isso, não acredito que dê para usar tais informações como forma de atribuir ou não qualidade a um livro. Mesmo começando esse texto mencionando Derrida, deixo aqui um trechinho de Umberto Eco, no qual ele toca nas múltiplas execuções de uma obra de arte:

Neste sentido, portanto, uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original.

Por estar com tais ideias na cabeça já há algum tempo é que senti a necessidade de assumir a minha pouquíssima paciência para textos taxativos e classificatórios no que toca a literatura. Nesse ponto, fecho com Eco. 

Por exemplo: estou lendo Uma Breve História de Sete Assassinatos, de Marlon James. Esse é um livro grande, parrudo em todos os sentidos – linguagem, história, cenas...(até mesmo o que chamo mentalmente, e nem sei se é correto pensar, fotografia.) O livro para mim já é um clássico na minha lista, assim como Deuses Americanos, de Gaiman, A Visita Cruel do Tempo, da Jennifer Egan, Dom Casmurro e Memórias Póstumas, de Machado de Assis, e tantos outros. Incluído como tal na minha categoria pessoal de livros para toda a vida, a narrativa criada por Marlon James transborda sentidos frente a qualquer texto julgador (bom, ruim, meio-termo) ou análise simples da história que eu possa fazer. Não há maneira de dar conta por completo de nada, incluindo de qualquer obra de arte.

Nesse sentido, pensando naquilo que quero buscar ao máximo nos textos que escrevo aqui ou em qualquer outro espaço, quero produzir textos que suspendam os julgamentos e trabalhem com as relações de sentido que eu, leitor, fiz enquanto lia. Que tentem narrar um pouco da minha execução da obra como leitor, as relações e possibilidades que construí e achei pertinentes na minha relação com o texto literário. E tudo isso sempre assumindo que tudo que for escrito nunca dará conta nem de um infinitésimo de possibilidades de sentido que outras pessoas possam construir com aquele texto. Até porque todo discurso é atravessado por quem fala e aí a gente volta lá para umas outras partes do Eco.

Em suma, o lance é:

Tem gente que vai sentir o coração aquecer com Edward e Bela Swan, tem gente que vai perder o fôlego com Capitu, tem gente que vai nem ligar para qualquer um dos dois... Cada um vai ler um personagem diferente a cada vez que ler o livro, e tudo bem, tudo tá valendo. Essa é a graça da arte.

Como não quero deixar de lado um de meus filósofos preferidos (acabei só falando do Umberto Eco até agora) e também porque acho que esse texto de Derrida dialoga demais com o que tento escrever, vou em sua crítica ao modo estruturalista e à crítica psicanalítica na forma como as duas abordam a literatura. Vou explicar minimamente o que Derrida afirma, mas sem entrar em maiores nomenclaturas ou quaisquer termos mais técnicos, esse não é o espaço para isso.

A crítica estruturalista, como Derrida e muitos outros autores que abordam o assunto comentam, visa buscar a estrutura profunda de um texto. Para essa corrente, existe um núcleo duro do texto, um cerne, uma literariedade presente em todo texto literário. Seja no modo como a história é contada, seja no encadeamento de fatos (apresentação de personagens >> conflito gerador >> clímax >> desfecho), seja qualquer outro elemento criado pelo próprio movimento estruturalista com o intuito de torná-lo uma recorrência catalogável, estruturável. Nesse sentido, o objetivo é chegar na estrutura do texto. Só lembrando, a crítica estruturalista é muito mais do que somente isso, aqui só dei uma pincelada para poder seguir adiante.

Para ficar mais imagético, imagine um prédio, ou o centro de uma cidade. Nesse cenário, imagine que você percorra todo esse local e busque nele aquilo que faz com que você identifique aquele espaço de prédios e pessoas como o centro de uma cidade. Ele tem elementos em comum com o centro de outras cidades. Prédios altos, enfileirados um após o outro, ruas movimentadas, muita gente andando para todo lado, barulhos de buzinas, carros, gritos, gente conversando, músicas de estabelecimentos comerciais... Enfim, nesse ponto de vista, o centro pode ser resumido nesses traços que serão os mesmos para qualquer cidade. O intuito dessa forma de ver a literatura é pela busca de recorrências, é criar uma categoria chamada Literatura. E pode acreditar: aquele lance de separar livro bom de livro ruim, clássico de pop, tem muito desse pensamento.

Se pensarmos nisso pelo caminho da literatura, talvez você possa lembrar lá da época da escola e dos estilos de época, aquela divisão meio bizarra – pelo menos para mim sempre foi e sempre será – que coloca certos livros como pertencentes ao Romantismo, ao Realismo, Modernismo e por aí vai. Pode parecer chutar cachorro morto, e é um pouco, mas infelizmente ainda encontro muita força nessas ideias em muitas conversas sobre literatura. Ou seja: você pega a literatura de algumas centenas de anos e as distribui em caixinhas de acordo com alguns traços comuns. Tudo que tem o elemento A vai para a caixinha do A; tudo que tem o elemento B, vai para a caixinha do B; mas e quem tem AB? Bom, aí a gente vai discutir se Machado é Romantismo ou Realismo. Mas Machado precisa ser alguma coisa dentro dessas caixinhas?

Note que essa forma de olhar para a literatura está presente e enraizada na gente o tempo todo, até mesmo na nossa separação por gêneros: ficção científica, romance, policial, erótico... Elencamos uma categoria – o assunto da história – e encaixamos os livros nela para facilitar a vida de todo mundo. Porém, como toda vez que criamos uma regra daquilo que cabe em uma categoria, também criamos imediatamente aquilo que não cabe, passam a existir textos, livros, modos de falar, pessoas que não cabem em nenhuma, e aí é que surge o problema, seja ele na literatura, seja ele social. 

A crença que seremos capazes de criar categorias tão potentes, tão capazes de encaixotar alguma coisa nela, é tão forte, que se tornou um mal deixado pelo estruturalismo. E aí tentamos remediar isso juntando as coisas: romance urbano de fantasia do anos 80; erótico fantástico com pegada steampunk; romance histórico erótico e tantas outras formas de categorizar a literatura e a vida (algumas delas provavelmente eu inventei agora só a título de ilustração). Entretanto, mais uma vez criamos aquilo que não é nada disso e que fica de fora das nossas listas inventadas.

Eu não quero dizer com isso que eu acho que não devemos encontrar recorrências nos livros, que é errado ter “um tipo de livro” que mais gostamos, nada disso. Esse texto, por mais que esteja público para todos lerem e palpitarem à vontade, fala de como eu, e somente eu, tenho pensado a literatura nesse momento. Mesmo detestando as categorias, também as utilizo e penso nos livros em função de suas temáticas: uhmmm, hoje o dia tá para ficção científica na veia, ou tem dias que a gente quer um lance mais pé no chão do vizinho ao lado, com a realidade crua te dando uns tapas na cara. Ou aquele livro triste do diabo, que faz você chorar e pedir uma cama quente no final. O lance, pelo menos depois que passei a ler alguns filósofos do coração, é que separar o desejo desejoso de um livro pelo tema não deve apagar tudo mais que está lá quando tento escrever sobre o que li. Logicamente no texto que escreverei  abordarei apenas um ou dois pontos que mais me chamaram atenção, entretanto o meu desejo é evitar, por exemplo, apagar a existência de outras possibilidades de sentido, de experiências, de vozes que podem se constituir na obra. Construir o meu texto sem que ele combata, apague, subalternize o discurso de qualquer outra pessoa que possa ter uma experiência diferente com aquele texto. O objetivo é fugir desse confronto que precisa de um certo e um errado. Que permaneçamos no encontro de diferenças, e não na negação delas em prol de uma história única.

Mas se por um lado a crítica estruturalista e suas categorias universais se agigantam como forma pura de pensar a literatura, outro caminho também bastante empregado é a redução psicanalítica daquele que escreve, inscrevendo a obra na vida do autor e vice-versa. Pelos registros psicanalíticos, vamos encontrando explicações, motivações, desejos e possibilidades que liguem autor e obra, numa relação imbricada de ambos. Não se trata de um puro espelhamento, mas sim de relações muito mais profundas entre um e outro.

Pode até parecer que os dois casos são distintos, porém ambos, por caminhos distintos, criam o mesmo problema: tentam prever os sentidos e possibilidades que a literatura pode alcançar, tentam mapear algo que só existe na ação singular do leitor. Mapeado o terreno do autor e da obra, sobra muito pouco espaço para o leitor participar e produzir o texto literário. Tudo está dito, e muito pouco pode ser contrariado. A literatura como um acontecimento, como aquilo que acontece sabe lá de onde, que faz você se distanciar do mundo e se chafurdar nele simultaneamente perde toda a mágica singular que acontece quando você começa a ler página após página. E essa mágica é tão bela, irrepetível, mesmo que o texto seja o mesmo, a edição seja a mesma... Sempre será diferente.

E é aí que retorno aqui para o blog. Se eu acredito nisso tudo que disse aqui acima, se eu acho que as emoções que sinto ao ler um texto serão totalmente diferentes das que Clara poderá sentir quando ler o mesmo texto, por que diabos eu vou escrever algo que assuma a minha experiência pessoal como termômetro imutável para atribuir qualidade a um texto? Pois que cada um faça sua leitura e sinta por si mesmo, viva e faça acontecer a literatura consigo. 

Umberto Eco abriu a obra lá na década de 60. Deleuze, Guattari, Derrida e tantos outros escancaram a porta da obra de arte, permitindo ao leitor assumir para o mundo sua autonomia. Vambora então compartilhar nossas experiências sem que nossos discursos apaguem a experiência do coleguinha. Fazendo desse jeito, a gente multiplica as possibilidades, multiplica a obra, multiplica o mundo de possibilidades de existir.


Referências bibliográficas:

DERRIDA, J. Escritura e Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2014.

ECO, U. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991.


PS: O texto acabou ficando um pouco longo demais, mas acho que tudo que está escrito aqui vai aparecer de certo modo no caminho que seguirei nas resenhas. Esse também foi em parte um texto piloto, no qual eu tentei trazer uma pitada das coisas que li durante os últimos anos – seja no mestrado, seja no final da graduação – numa escrita um pouco mais descompromissada, sem a necessidade de um maior rigor acadêmico. As referências que usei estão aí, são costumes dos últimos anos na universidade.


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