O Ódio que Você Semeia, de Angie Thomas

|  Por Clara Taveira  |



Começar a escrever essa resenha foi difícil. Explico o motivo: sou branca, branquelíssima, branquelona, vidros de palmitos se acham bronzeados perto de mim. Sabe cano de PVC? Sou eu.

Preciso explicar mais o motivo de ter demorado um mês para fazer essa resenha? 

Não, né?
Ah, preciso?

Beleza. Vamos lá:

Nunca, jamais na minha vida, eu sofri um pedacinho de qualquer coisinha de preconceito relacionado à cor (ou ausência dela, eu realmente sou um fantasma) da minha pele. E, obviamente, jamais vou sofrer. Ser branca nunca foi motivo para racismo, preconceito, perda de oportunidades. Isso deveria ser óbvio já.

Por esse motivo, tive muito medo de falar besteira.

“MAS VOCÊ É NETA DE UM HOMEM NEGRO!”

E daí? Se um tio meu estiver desempregado, eu automaticamente entro na fila do seguro-desemprego? Não, né? Então o que raios tem a ver meu avô comigo?

“VOCÊ PODE FALAR SOBRE RACISMO, ENTÃO”

Eu nunca disse que não poderia falar sobre racismo. Pelo contrário, acho que todo mundo tem que fazer barulho mesmo. Não é fingindo que ele não existe que o raio do problema vai sumir.

A questão toda é que eu tive muito medo de ser só mais uma branquela da zona sul carioca relativizando, mesmo que sem querer, algo que eu não tenho e nunca terei vivência. Por isso passei um tempão pensando no que dizer e como dizer sobre O Ódio que Você Semeia.

Com muito carinho, consegui decidir, e digo agora:

É um livrão.

Claro, alguém poderia dizer que não passa de um infanto (o que não é verdade, mas se fosse, que mal teria?), que é uma versão séria de young adults, que isso, que isso, que aquilo. 

Show, cada um com suas opiniões. Eu só posso dizer: discordo totalmente. É, sim, um livrão para mim. Saboroso, delicado, mas pé na porta ao mesmo tempo, necessário, fundamental. Não tenho filhos, mas deixaria todos um mês de castigo se eles não lessem esse livro.

O Ódio que Você Semeia, ou THUG, para os mais íntimos (“The Hate U Give”), não deixa a desejar em nenhum aspecto literário, ao meu ver. É, sim, um young adult, mas, de novo: qual é o problema disso?? Se querem ler um livro absurdamente adulto que fale sobre o assunto, corram no Breve História Sobre Sete Assassinatos, já sabendo que o desconforto permeia o livro do começo ao fim. Se não for o caso, então se jogue em uma leitura gostosa, poxa, e deixe o preconceito bobo com o gênero de canto.

Sobre a história em si, THUG nos conta o dia a dia de Starr, uma jovem negra que, voltando de uma festa, testemunha o assassinato de seu amigo desarmado. Tudo acontece absurdamente rápido, mas não muda o fato de que Starr fica nervosa mesmo antes de algo acontecer: ela foi educada pelo pai a ficar de olhos abertos perto de policiais. A responder com educação. Manter suas mãos visíveis. Chamá-lo de “senhor”. Não fazer movimentos bruscos. Nada disso adianta, já que o policial que parou o caro em que estava confunde uma escova de cabelo com uma arma e mata seu amigo na sua frente.

A vida de Starr, obviamente, muda da noite para o dia. Ela se vê sem seu o amigo de infância, com medo, no meio de um conflito entre policiais, traficantes, líderes de gangue e afins. Todos querendo que Starr feche o biquinho dela e finja que foi apenas um grande acidente.

Arram, um acidente.

Claro.

Starr nunca se envolveu em nada relacionado a bandidagem, mas, obviamente, não é o que a televisão diz. O que o policial assassino diz. O que repórteres dizem. O que os gangstas dizem. Não importa o que eles dizem: quem não deve dizer nada é Starr, e isso fica bem claro, o que apavora a pobre garota, que nunca fez nada de errado na vida.

Seu amigo, entretanto, era membro de gangue. 

OPA, ENTÃO TUDO BEM, NÉ? SE ELE ERA BANDIDO, ENTÃO TÁ OK ELE LEVAR TRÊS TIROS NAS FUÇAS, MESMO ESTANDO DESARMADO E DE COSTAS!

Quem nunca ouviu isso? Quantas notícias já não lemos no Brasil de pessoas levando tiros (de bala perdida ou encontrada) e levando culpa pelos tiros? Eu me recordo perfeitamente de um caso de um guri de oito anos que levou um tiro na cabeça na porta de casa, e uma página de extrema-qualquer-coisa compartilhou uma foto de uma criança TOTALMENTE ALEATÓRIA (inclusive, a idade da criança era muito diferente!) dizendo “AÍ O BANDIDINHO QUE VOCÊS TÃO DEFENDENDO.” A criança da foto tinha um fuzil na mão.

Ou seja: o fato de uma criança ter levado um tiro na cara na porta de casa tá perdoado, pois alguma pessoa desconhecida disse que era bandido, né? Então tá ótimo, atire primeiro, pergunte depois, não sinta pena ou compaixão, vasculhe o passado do garoto negro. Se ele é negro, alguma culpa deve ter, não?

Acho doido que ninguém faz isso com branco. Morreu um jovem na zona sul do Rio. É branco e bandido? Se torna “jovem de classe média”, jamais traficante, e as reportagens nunca tentam justificar sua morte. É mais uma vítima da bandidagem, tadinho do traficante branco, apenas fez escolhas indevidas, quem nunca?

Já o negro, amarra no poste mesmo.

Starr vê e sente isso na pele. Seu amigo de infância, que tomou um caminho errado, sendo reduzido a um mero traficantezinho, bandidinho e todos os “inhos” que as pessoas usam para desqualificar outra pessoa. Seu amigo de infância, tão querido, sendo reduzido a uma estatística que satisfaz absurdamente uma grande parcela da população.

Isso é errado em tantos níveis, que eu me peguei lembrando de casos reais brasileiros a cada capítulo, e como doeu. Em diversos momentos de minha leitura, me lembrei de meus ex-alunos, moradores da Rocinha, sofrendo diariamente as piadinhas sem graça, as escovadas sem razão, as agressões sem aviso. 

Doeu saber que milhares de Starrs surgem a todo momento, ou sendo testemunhas, ou sendo as próprias vítimas.

Isso dói.

O Ódio que Você Semeia jamais se propõe a ser um livro que incita ódio contra policiais. Jamais. Starr, inclusive, tem um tio policial, que ela ama e considera um segundo pai. Nele, ela confia cegamente, o que mostra que não é uma questão de "preconceito" contra a corporação. É uma questão de proteção. THUG não é um livro maniqueísta, de "bem" contra o "mal". É um livro que joga questionamentos importantes no ar, isso sim, que cutuca feridas.

Por exemplo: por que devemos sentir raiva de um pai negro que cria sua filha negra de modo que ela fique esperta perto de policiais, mas não sentimos raiva dos policiais que atiram em pessoas negras apenas por elas serem negras?

Por que, em vez de se questionar o motivo de o policial ser treinado (ou já ter esses pensamentos, mas ainda assim ser aprovado em uma corporação) para triplicar a desconfiança frente a um jovem negro, nós vasculhamos o passado da vítima em busca de erros?

E, principalmente, por que ainda prosseguimos com a ladainha de que “a escravidão acabou”, que “todos têm as mesmas oportunidades”, que “cidadão de bem não leva tiro”, que “racismo é vitimismo”, se a quantidade de “tiros acidentais” é muito maior em negros do que em brancos, se os brancos sempre são maioria em universidade, se isso, se isso, se aquilo? 

Por que, em pleno século XXI, a ladainha de que a justiça é cega ainda é bradada aos quatro ventos? Porque, não, gente, ela não é! Pesquisem “Rafael Braga” no Google e me digam se a justiça é cega! 

Não vou entrar em mais detalhes sobre a história, a proposta desse texto não é ser um resumo do maravilhoso livro lançado pela Galera Record, mas sim um desabafo, uma experiência de leitura e, principalmente, um grande pedido:

Leiam THUG.

Porque o ódio que vocês semeiam fode com todo mundo. Sem exceção. Uns mais que outros, mas sem exceção.

Um comentário:

  1. Arrasou na resenha, mana!! Cheguei a ficar de coração apertado em algumas partes e ainda mais curiosa para ler THUG ❤

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