Sempre Vivemos no Castelo, de Shirley Jackson


|  Por Raphael Pellegrini  |

No início, tinha uma segunda intenção; na verdade, um segundo ponto de partida; uma indicação; uma tentativa de ser parte. Muitas vezes é difícil fazer parte, porque para ser parte é necessário não se assumir como um todo em transformação, como um todo incompleto. A patrulha da fraude trabalha quase como os oficiais da Equipe de Ajuste, de Dick, possuem portas que te cortam por caminhos inesperados. Eu sei que esse começo é nebuloso e talvez nem seja um bom começo para um texto que narra um pouco do percurso de leitura de Sempre Vivemos no Castelo, mas, de certo modo, se fez como um instantâneo de leitura, um encontro entre livro e vida. E eu também quis compartilhar.

A leitura veio, chegou um tanto por um acaso anunciado. Foi uma indicação, logo teve aviso prévio, teve percurso de chegada, mas o acontecimento foi anterior. Uma parte interessante desse processo é que a indicação chegou sem aviso. Pluft! O que sei é que a minha Shirley, de Sempre Vivemos no Castelo, produziu um encontro - ou talvez o encontro tenha produzido a minha Shirley - prazer e orgasmo (como Barthes menciona aqui) e entrou em ressonância com as muitas conversas que tenho com Clara às seis da manhã.

Enquanto lia, me lembrava de quando imaginava a possibilidade de criar asas e fazer o caminho mais curto para voltar ao meu castelo. Eu contava os passos até a escada, me abrigando nas sombras produzidas pelas caixas de equipamentos e pela ausência da lâmpada de um dos lados da parede, e passava para o outro prédio. Sempre contava o tempo para que minha saída fosse mais rápida que a velocidade do elevador. Caso contrário, ficaria sentado no último lance de escadas por uns dez ou quinze minutos - tempo suficiente para todos já terem ido embora -, lendo algo interessante ou somente olhando para as paredes, para a tinta desgastada. Muitas vezes também bati ponto no café e saí assim que alguém entrava e se aproximava mais.

Por outro lado, não passei por nada parecido ao que Merricat, mesmo que provavelmente eu imagine que sentia algo bem próximo ao que ela narra. Nessas situações em que a personagem vivia, me perguntava o tempo todo: por que tão violentos? Por que tanta maldade? Por que ser tão ruim com aquela pessoa? E assim que percorria mais algumas linhas, Merricat mostrava toda sua força de sair de seu castelo e enfrentar tudo aquilo mais uma vez.

Assim me afeiçoei a Merricat, o que não sei se me torna um pouco louco, sociopata, piromaníaco, mas em muitos momentos tive vontade de pregar seu livro caído, ou de simplesmente fazer um cafuné em Jonas. A relação de Constance e Merricat foi outra construção de Shirley que me fez querer estar perto de tudo aquilo. Uma relação que me fez sentir que é possível apenas ser, sem que o outro deseje que você seja mais do que é, que ofereça algo que não está a seu alcance. Os diálogos das irmãs, as atividades simples - e nesse sentido a relação com a comida e o cuidado com a terra, algo que tem cada dia mais mexido comigo - e uma sensação de felicidade pela existência.

A relação das irmãs foi o tempo todo poderosamente honesta, mesmo que existam segredos inconfessos. Ao longo do texto, senti uma honestidade que, não sei bem se a palavra seria essa, mas que planifica sem perder a complexidade. Temos apenas duas xícaras para tomar café e um pires, mas somente precisamos disso para o café. E foi nessa cena, quase no fim do livro, que bateu forte: como é difícil se despir de tanta influência cotidiana que vai tentando te convencer que você está rodeado de ausência e dizer simplesmente que se está feliz.

E a Patrulha da Fraude tenta:

Número de clientes precisa ser muito maior; é melhor diminuir custos e aumentar receitas; você deveria fazer outra coisa da vida; já deveria estar ganhando mais com essa idade.

E sempre ataca mais:

Se você for a tal lugar, terá oportunidades; se escrever mais esse texto, poderá abrir portas em tal espaço; se for a esse congresso, poderá isso ou aquilo…

E muitas vezes eu saí do castelo. Fui, mas não desejava aquela oportunidade; escrevi, mas não tracei as linhas que desejava e nem queria abrir porta alguma; estive nos congressos, mas não queria estar.

Foi em parte por isso que Sempre Vivemos no Castelo foi orgasmo, trazendo aquela perversão de mesmo sabendo o que ocorre na história, quero reler, revistar aquelas falas e ações. Não importa o final, mas sim a viagem que o livro provoca. Viagem no eu, que se (re)cria. História que me fez reconhecer meu castelo, valorizá-lo, meu pequeno esconderijo com livros, com ingredientes que gosto, na tentativa de cozinhar com Constance, com vontade de conversar, amar, proteger, viver com Clara, amor costurado na alma.

Entretanto não dá para esconder que existe muita violência, muitas cadeiras arremessadas nas chamas, muitos gritos e desejos de que o pior aconteça. E viramos mais uma página e isso passa, sempre voltamos ao castelo, independentemente de sua aparência ou forma. Ele estará lá, e seremos felizes novamente.

É mais ou menos assim nas conversas das seis. Dissemos algumas vezes que enfim 2013 acabou. Aqueles foram anos difíceis, 2013, 2013, 2013, 2013, 2017. Enfim o incêndio acabou, podemos preparar o café da manhã.

Se você chegou até aqui, provavelmente notou que esse texto é um pouquinho diferente dos outros. Em vez de uma apresentação ou convite à leitura, preferi contar um pouco do que senti, lembrei, imaginei. Um pouco dos efeitos da leitura. Um pouco de mim, do livro, do encontro. Talvez tenha pequenas informações da história, mas acredito que nada demasiadamente preocupante que poderia afetar a leitura. Sempre Vivemos no Castelo foi uma maravilhosa surpresa, que para a minha sorte, poderá sempre ser revisitada quando o coração apertar.



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